A seguir o relato da leitora Daniela sobre a violência obstétrica que passou ao precisar fazer uma curetagem. Mas afinal de contas, o que é violência obstétrica? Na contramão do parto humanizado que prioriza o bem estar da mamãe e bebê, a violência obstétrica não se trata de agressão física somente. Como um momento tão lindo como o parto pode se tornar traumatizante por conta de um tratamento humilhante e desrespeitoso e grosseiro por parte dos profissionais que atendem a parturiente. Ofensas verbais muitas vezes podem machucar muito mais do que um tapa em si.
Qualquer tratamento não condizente com a situação, podem sim se enquadrar como violência obstétrica. Por exemplo, uma parturiente com dificuldade de empurrar a criança na hora do parto. Não deveria ser amarrada e nem impedida de gritar, com palavras ofensivas como ” fica quieta e empurra essa criança” ou ser feito qualquer procedimento sem devida autorização prévia ou pelo menos explicar o porquê. Enfim, os casos de violência obstétrica tem sido cada dia mais relatados pois, felizmente a consciência das pessoas com os seus direitos tem cada dia ficado mais claros e principalmente para as gestantes.
“Meu caso de violência obstétrica não chegou à sala de parto, na verdade passou muito longe dela… Após apenas 2 meses de tentativas de engravidar, recebi meu positivo e eu e meu marido ficamos eufóricos, contamos para a família e começamos a celebrar até que, na 7ª semana, numa consulta no PS por conta de um discreto sangramento, fomos surpreendidos com a notícia da morte do embrião. Eu já havia ouvido o coraçãozinho dele bater num ultrassom feito na 5ª semana, então foi muito chocante vê-lo inativo e ver a tristeza no rosto do meu marido, que estava me acompanhando para ver e ouvir pela primeira vez o coraçãozinho do nosso bebê…
Fui encaminhada à médica plantonista do PS e ela me explicou que eu estava com um caso de aborto retido e que deveria tomar um medicamento pelos próximos 7 dias para completa expulsão do embrião, e então voltar para que verificassem se o aborto havia se completado e se haveria a necessidade de curetagem. Foi profissional sem muito envolvimento, me deu um atestado de 7 dias,me passou as orientações de forma clara e então eu fui para casa encarar aquela dor e aquele vazio de estar perdendo meu bebê. Foi muito doloroso e eu e meu marido ficamos inconsoláveis. Mas a vida deveria seguir.
Após 2 dias tomando o medicamento, comecei a sentir fortes contrações e após iniciado o sangramento, finalmente expulsei o embrião, momento de grande dor, principalmente pelo que ele representava: eu sabia que meu bebê estava morto, que teria que ser expulso, mas vê-lo saindo de mim e caindo no vaso sanitário foi bastante penoso. Enfim, sangrei abundantemente pelos próximos dias e então, ao fim da semana, retornei ao PS, onde primeiro fiz um ultrassom e então fui encaminhada à GO de plantão.
Na sala de espera da ginecologia havia várias gravidinhas felizes alisando suas barrigas e uma sofrida em pleno trabalho de parto enquanto eu segurava meu ultrassom onde constava se meu útero estava totalmente vazio ou ainda tinha restos do bebê que eu tive que expelir. Eu segurava o choro e torcia para que, pelo menos, não tivesse que fazer a curetagem, pois eu sabia que depois dela teria que esperar ao menos 6 meses para novas tentativas de engravidar, e é claro, minha ansiedade iria me levar à loucura naqueles 6 meses…
Quando chegou minha hora de ser atendida, notei que havia vários estagiários e/ou residentes na sala e um dr. mais velho que parecia estar no comando. Fiquei confusa com tanta gente, e uma das profissionais presentes me perguntou qual era meu caso, enquanto todos me olhavam. Respondi, intimidada, que eu havia sido diagnosticada com aborto retido, que tivera que tomar medicamento para expulsar o embrião e que agora estava lá para que verificassem se a expulsão havia sido completa. Não sei se naquele momento algo que eu disse não ficou claro ou ficou mal-explicado. O médico mais velho pegou meu ultrassom, falou com os outros que medidas tomar e saiu da sala.
Então, a profissional atendente me explicou que ainda haviam restos do abortamento dentro do meu útero e que eles me prescreveriam mais uma semana tomando o medicamento para tentar a expulsão completa daqueles restos. Perguntei se eles me dariam mais uma semana de licença do meu trabalho, já que o medicamento causava cólicas. Então a profissional me olhou com bastante má-vontade e disse: “Vou só te dar o dia de hoje, não posso te dar mais que isso”, ao que eu me desesperei porque não tinha ainda condições físicas muito menos psicológicas de voltar a lecionar: a perda de sangue havia me deixado fraca e a lembrança do aborto me fazia chorar a cada hora. Comecei a chorar e disse: “Não tenho condições de voltar a dar aulas, dou aulas de pé, até as 22 hrs da noite, não vou conseguir…”. A doutora se mostrou muito incomodada com minha reação e respondeu, apontando para a colega ao lado, que estava fazendo o atestado: “Ela vai ver o que pode fazer por você” enquanto escrevia a receita. Me entregou então a receita e um atestado, dizendo: “Vamos te dar 2 dias, mais do que isso não dá”.
Agradeci profundamente, enxugando as lágrimas e saí da sala confusa, sem entender por que havia sido tratada com tanto descaso e desprezo. Eu era vítima, estava perdendo meu bebê, fui até o PS esperando um atendimento compreensivo, humano, sensível à minha dor e, ao contrário disso, fui surpreendida com pessoas que deixavam claro acreditar que eu estava me aproveitando de um aborto para não trabalhar. Fiquei com muitas dúvidas, tentei relembrar o que eu havia dito para encontrar algum sentido dúbio, algum mal-entendido nas minhas palavras que justificassem a aspereza da doutora…
Mas não conseguia compreender. Ao chegar em casa e relatar o ocorrido a algumas pessoas, fui alertada que muitos médicos tratam casos de aborto sempre como se fossem provocados e são agressivos e desagradáveis com as pacientes. Naquele momento percebi que havia sido exatamente o que havia acontecido comigo, aquela doutora julgou que eu havia provocado a morte do meu bebê e por isso foi tão seca e ríspida comigo. Chorei muito ao entender isso, fiquei muito ofendida e magoada, me arrependi por não ter estado preparada para uma reação à altura no momento do atendimento, por não ter dado uma resposta, por não ter exigido meus direitos, por ter me humilhado implorando por mais um dia de licença, por ter sido mal-interpretada e julgada de forma tão desumana num momento tão delicado e doloroso da minha vida.
O maior trauma de meu aborto não foi a perda em si e sim foi a forma como fui tratada na sala da ginecologia, ante um grande número de profissionais tão insensíveis e desumanos. Pensar que residentes já estão se formando com este tipo de critério é revoltante. Penso que um médico deve tratar todos os pacientes de forma profissional e imparcial, independente de julgamentos próprios e íntimos. Creio que até mesmo mulheres que provocam aborto têm um histórico de dor e sofrimento, e que nenhuma mulher deve ser julgada pelas aparências num momento como esse, e sim medicada e orientada devidamente. Médicos são médicos, juízes são juízes.
Já estive em atendimento com a mesma profissional durante a segunda gravidez, ela foi simpática e profissional, mas não consigo controlar minhas reações de tremedeira e nervosismo quando vejo que é ela. Ela sempre me assegura: “Está tudo bem com seu bebê, não fique nervosa” e eu nunca consegui esclarecer que o que me deixa nervosa é a simples visão de seu rosto e a lembrança de sua negligência.
Alguns meses depois, uma amiga passou por experiência parecida num outro PS, com outra doutora, mas eu a havia alertado e ela respondeu à altura: “Escuta aqui, você não me conhece, não sabe da minha história, não tem o direito de me julgar! Eu estou sofrendo aborto de um bebê que eu desejei profundamente, e não que eu matei, não cabe a você julgar pelas aparências, você aqui é médica, limite-se a medicar” e assim por diante. Senti minha dignidade um pouco restaurada pela reação da minha amiga, mas sempre vou carregar a frustração de não ter reagido à altura no momento em que fui encurralada e intimidada por aqueles que deveriam me oferecer apoio e amparo.
Conhece algum caso de violência obstétrica? então entre em contato comigo para podermos complementar esse assunto tão importante que deve ser abordado e esclarecido pela sua importância. Compartilhe, comente e espalhe esse relato!
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Foto: European Parliament